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Água doce: conheça a história do surfe em Governador Valadares (MG)

O surfe não tem fronteiras, não tem sotaques. Clichês à parte, o esporte vem ganhando adeptos em todo o Mundo, inclusive em cidades que não são banhadas pelo mar através das piscinas de ondas, e de práticas como o surfe em corredeiras. A cidade de Governador Valadares, em Minas Gerais,

Escrito por

Gerson Filho

|

Publicado em:

20/09/2022

|

Atualizado em:

27/09/2022

-

16:14

|

9 min de leitura

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Paulinho é pioneiro no surfe no rio doce – Foto: Aílton Catão

O surfe não tem fronteiras, nem sotaques. Clichês à parte, o esporte vem ganhando adeptos em todo o Mundo, inclusive em cidades que não são banhadas pelo mar através das piscinas de ondas, e de práticas como o surfe em corredeiras. A cidade de Governador Valadares, em Minas Gerais, é um exemplo desse movimento e vem desenvolvendo essa modalidade nas corredeiras no Rio Doce.

A ideia de surfar no rio que atravessa a cidade surgiu lá pelos idos de 1988, quando os amigos canoístas, Leandro, Nuno, Rolando, Pimpa e Paulinho decidiram trocar as canoas por pranchas de surfe, influenciados por uma fita de VHS que já naquela época mostrava o surfe em corredeiras. Apesar de ser super inusitado, o surfe em água doce não é uma novidade. Existem inclusive competições disputadas em lagos, rios, lagoas, corredeiras, entre outros. Dentre esses um do mais conhecidos, e perigosos, é o famoso rio Zambezi, na Zâmbia, ou mesmo na Rússia.

Conversamos com Paulo Guido, 51 anos, surfista e pioneiro do surfe em Governador Valadares sobre essa inusitada e perigosa aventura. Paulinho e seus amigos fazem parte da primeira geração do surfe na região e, como todo mineiro, o surfista tem muita história pra contar. Confira na entrevista abaixo.

Paulo pegando umas ondas no Rio Doce – Foto: Douglas Magno/AFP

Gerson Filho – Quantos são os surfistas de rio em Governador Valadares?
Paulo Guido:
No máximo quatro. Lógico que às vezes aparece alguém querendo, mas tem aquele receio. Somos poucos e desses poucos, eu e André, que também é mountainbiker, surfa comigo, somos os mais assíduos.

Gerson Filho – Qual a parte mais difícil de surfar no rio?
Paulo Guido:A parte mais difícil é você se adaptar a uma realidade e ambientes diferentes. Porque normalmente você fica meio engessado, com muito medo. Eu tento ajudar, mas todo mundo já quer pegar a onda em pé, e pegar uma onda grande, manobrar. Tem que aprender a remar, tem que ralar. Você tem que começar aos poucos.

Paulinho inicia um cutback – Foto: Aílton Catão

Gerson Filho – Como e onde foi sua primeira experiência com o surfe?
Paulo Guido:Cara, minha primeira experiência com surfe foi através das revistas de surfe. Na Brasil surf, visual esportivo e alguns outros registros que me mostraram o esporte. E também nos filmes que passavam na Sessão da Tarde. Depois eu fui para a Bahia, em Alcobaça, e um amigo ganhou uma prancha. Nessa época a gente fazia canoagem e já tínhamos uma boa relação com as corredeiras. Éramos um grupo grande de canoístas e a gente gostava de ficar surfando nas corredeiras com as canoas. Nessa época a gente já tinha sido ‘picado’ pelo surfe, foi quando um dos nossos amigos que tinha um parente que morava na Suíça e viajava pra lá nas férias todos os anos, trouxe algumas fitas VHS com o pessoal praticando canoagem na Europa. E numa dessa fitas, tinha uma parte que mostrava um pessoal surfando de pranchas nos rios. Falei: ‘Caramba, se tem um cara surfando lá, por que a gente não pode surfar aqui?!’

Gerson Filho -Quem foram as primeiras pessoas a surfar no Rio Doce, em Governador Valadares?
Paulo Guido: Eu, o Pimpa ( que hoje é piloto de helicóptero); o Rolando ( mora hoje nos Estados Unidos e pratica vários esportes); o Leandro ( mora no Leme, no Rio e não surfa ); e o Nuno que mora em Vilha Velha e até hoje é um surfista fissurado que quando tem onda, ele até esquece do trabalho e vai surfar. Eu sigo morando em Governador Valadares e surfando no rio e no mar. Sei que os vídeos o que chamam mais atenção são os em que aparecem essas ondas grandes, mais cabeludas, com aquela água escura e essa força toda. Mas nós começamos surfar uma onda bem menor, mais fácil. E nessa onda a gente entra e sai remando no braço.

Paulo surfando “de sunguinha de tricô” no Rio Doce em 1989 – Foto: arquivo pessoal

Gerson Filho – Vi que vocês desenvolveram um esquema com uma corda, como funciona?
Paulo Guido: Quando rio estava muito forte, a gente entrava pra pegar onda e eram dez tentativas pra onze darem errado…rs. Eram raras as vezes em que a gente conseguia entrar na onda, porque a força e a velocidade da água são muito fortes. E aí um dos amigos, da nova geração, deu essa ideia de fixarmos uma corda para nos auxiliar a entrar na onda. Foi então que amarramos uma corda em uma árvore bem próxima à margem do rio. E com isso, quando a gente quer entrar na onda, seguramos na corda para nos dar estabilidade e entrar na onda com mais facilidade. O processo é meio complicado, mas você se acostuma: você segura e direciona a prancha para o lado e quando ela estabiliza você dropa. Dessa forma a prancha entra na onda com muito mais facilidade. E com isso nós economizamos 500 milhões de tentativas…rs e você acaba melhorando o desempenho, porque não está tão cansado de lutar contra a corredeira. O problema não é nem a entrada na onda, é a saída pois quando você cai, é arrastado pela correnteza rio abaixo.

Os amigos compartilham uma onda no Rio Doce – Foto: arquivo pessoal

Gerson Filho – Já houve algum acidente?
Paulo Guido: Cara nunca houveram acidentes, graças a Deus. Quando o rio enche, desce muita coisa pela correnteza: galhos, mato, troncos, pedaços de madeira. E você tem que fazer um slalom, e ir desviando de tudo. Esse anos três pranchas foram avariadas, e uma delas quebrou o copinho de quilha. Outra coisa que pode acontecer é arrebentar o estrepe e você ter que ir atrás da prancha rio abaixo. Já aconteceu algumas vezes comigo, e eu me joguei na água, com outra prancha, para buscar a perdida e consegui voltar a salvo.

Visual do pico – Foto: arquivo pessoal

Gerson Filho – Quais as melhores condições?
Paulo Guido: Nesse momento que a gente tá passando agora, com o rio bem baixo, está rolando uma ondinha bem pequena, uma direitinha bem curta, que nós surfamos só pra não perder o rip. Mas a gente já está esperando a temporada, que começa em setembro e vai até março, dependendo do volume de chuvas. As ondas das corredeiras são formadas pelas bancadas de pedras, e pelo volume da água que passa. Então em uma corredeira podem haver várias ondas, como é o caso dessa corredeira que a gente surfa, que digamos tem três ondas. Mas a melhor condição é quando o rio está grande, com cerca de dois metros acima do nível normal. Acima de dois metros e meio, a onda vai ficar “morrada”, e não quebra, ela fica só volumosa, mas sem parede. Você não tem condições de surfar com um foilboard, que seria uma solução, por conta das várias coisas que vem na correnteza.

Visual aéreo do pico – Foto: Douglas Magno/AFP

 

Gerson Filho – Há surfistas que começaram a surfar ali, e migraram para o mar?
Paulo Guido: Já teve gente que começou a surfar no rio e desenvolveu mais no mar. Mas eu comecei em Alcobaça, na Bahia e desenvolvi meu surfe em Valadares. Depois que o cara começa a surfar aqui, ele quer surfar no mar. Hoje é muito mais fácil de um cara que começa a surfar no rio surfar no mar se sentir seguro, do que o cara que aprendeu surfar no mar e vem surfar aqui no rio. É um contraste muito grande entre a entrada da onda e a saída. A gente praticamente já está na onda, e depois remamos como loucos para conseguir sair daquela corredeira, voltar para a margem. Já quem surfa no mar precisa passar a arrebentação para chegar no pico. A gente surfa em sentido contrário, contra a correnteza, como se estivéssemos subindo o rio. E quem é acostumado a surfar no rio, assimila melhor esse processo reverso.

Paulo à vontade no Rio Doce – Foto: Marcelo Barone

Gerson Filho – Qual o principal perigo de surfar no Rio Doce?
Paulo Guido: O principal perigo de surfar no rio, não são os galhos, troncos etc; que vem boiando na correnteza. Porque essas coisas você enxerga. Mas o que você não vê é que é o perigo! E o que você não enxerga nesse caso é seu cansaço. Uma vez que você está surfando, você só quer surfar, e a onda não acaba! Então você surfa, surfa, surfa e não percebe o cansaço chegando. Aí você cai em meio a uma correnteza muito forte em todas as direções: ela te empurra, te joga pro meio do rio, te cospe. E é necessário ter muita cautela pra poder pegar sua prancha e ir descendo o rio. Porque mesmo com a prancha, vai tomando caldo e se der mole, se afoga mesmo.

Fernando Mourão de backside – Foto: arquivo pessoal

Gerson Filho – Existem outros picos a serem explorados na região?
Paulo Guido: Nessa pergunta daria para escrevermos um livro…rs. Mas vamos lá. Todos os rios têm corredeiras, e ninguém nunca atentou para isso. Quando nós começamos a surfar, o lugar escolhido foi em frente à minha casa. Vimos que era uma onda pequena, que não sustentava o peso da gente surfando, mudamos para uma corredeira a cerca de 10 quilômetros abaixo, que conseguimos ficar em pé, mas era muito perigosa. Aí mudamos para essa corredeira em que surfamos até hoje. Tem ondas em vários lugares, porém, há locais em que tem saídas de esgoto. Eu inclusive já peguei hepatite surfando. Nós tivemos a sorte de que as melhores ondas do rio estão localizadas na parte do rio em que é um parque natural e ali a água é limpa. Mas na região toda tem rio com corredeiras. Eu trabalho viajando e em uma das minhas viagens, passei por uma beira de estrada e vi um rio passando. Entrei em uma estrada de terra, e fui em direção à cidade de Ipanema. Pra minha surpresa, entrei em uma pousada com rio e avistei uma corredeira que tinha uma onda surfável. A minha cabeça está bem focada em divulgar as variáveis e muitas possibilidades que têm no surfe em corredeiras. Eu vejo que o Brasil é enorme, e tem muitas ondas de rio a serem surfadas. Tem muita corredeira. Em Minas, Goiás, Tocantins, Mato Grosso do Sul, Amazonas, Acre, Interior da Bahia, Piaui, então o que a gente puder divulgar através do nosso instagram, vamos ajudar. E vamos ajudar no que for preciso. No início do ano um vídeo nosso viralizou e apareceu um monte de gente nos procurando. De Mato Grosso, de Tocantins, lá de Alta Floresta. Ai os caras filmaram uma das corredeiras deles, e nos perguntaram “E essa onda, dá pra surfar?” A gente ficou trocando ideia, mas acho que os caras ainda tem muito receio. Só que a gente já andava de caiaque, e pra gente é normal tomar um capote. Então lá nesse lugar no Mato Grosso que tem uma água cristalina.

A galera mantendo o rip no rio – Foto: reprodução Instagram

Você vislumbra competições no Rio Doce?
Paulo Guido: Quem sabe um dia nós teremos campeonatos entre estados como Minas x Tocantins, e você imagina como o esporte vai crescer. Então tem um mundo para crescer. Da minha parte o que eu quero é divulgar o surfe em rios. Na Europa temos campeonatos em rios, nos EUA tem, no Japão, na Rússia, nos países árabes, no Paquistão. Com o efeito Medina, Ítalo, Filipinho, o surfe está crescendo, o interior do Brasil inteiro já consome surfe. Se vocês olharem pra dentro do país, vão ver milhões de oportunidades. Penso no surfe competitivo em rios no Brasil, mas no momento estou mais focado na possibilidade de surfarmos em ondas de rio no Brasil inteiro. A primeira etapa, é esse trabalho que eu tento fazer é mostrar que existe surfe em água doce no Brasil. Outro dia eu vi uma postagem de uma comemoração do primeiro campeonato de surfe em corredeiras, há cinquenta anos atrás, na Europa. Mas o primeiro degrau é levar a informação de que existe essa modalidade. Inclusive na Europa tem muitas mulheres que surfam em rios. E vamos desenvolver essa modalidade no Brasil.

Vocês já desenvolveram alguma prancha específica para surfar no Rio Doce?
Paulo Guido: Prancha específica para surfar – Não, apesar de no surfe de corredeiras mundo afora, os caras usam uma prancha que parece um fun, às vezes com duas quilhas. Mas eu gosto de surfar com as mesmas pranchas que eu surfo no mar. Inclusive estou fazendo uma prancha com o Victor Vasconcelos. Conversei com ele sobre uma prancha que funcionaria no rio. Quando o rio está grande, eu preciso que a prancha esteja bem segura. Talvez usar uma quilha maior, ou uma canaleta. Nós discutimos sobre uma prancha mais apropriada pra surfar no rio, e conversamos sobre volume, rocker e decidimos pôr duas canaletas no finalzinho da rabeta pra ver se ela segura mais, porém, nada muito específico pra falar “essa é uma prancha de corredeira!”. Diferente da galera que só surfa em corredeira. Lá na Alemanha, pelo que sei, os caras usam uma prancha com quilhas menores. Pensamos até em talvez fazer uma prancha no estilo tow in, mas a prancha ficaria muito pesada.

Saiba mais sobre a galera do Surf de Corredeiras.

+ LEIA MAIS:  Inusitado é pouco: confira a galeria de fotos de um pico próximo à Foz do São Franciscoon

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